Medicamento usado para dormir será vendido apenas com receita azul, a partir de agosto, inclusive as caixas com unidades de até 10 mg
Após uma epidemia envolvendo o indutor do sono Zolpidem, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) decidiu aumentar o controle do medicamento, que será considerado tarja preta, independente da sua concentração, a partir de agosto. Com isso, mesmo as embalagens com comprimidos de até 10 mg serão vendidas apenas com a receita azul, passando a integrar a lista de substâncias psicotrópicas controladas no País. Antes, as caixas com unidades de até 10 mg eram vendidas com a receita de controle especial, de duas vias, e não com a “B”, mais restrita, o que teria contribuído para o uso indiscriminado do Zolpidem. Matéria publicada pela Tribuna em outubro do ano passado mostrou que, embora a própria bula recomende tratamento por até quatro semanas, pessoas têm tomado as pílulas por anos, em quantidades cada vez maiores.
Além do alerta visual aos usuários com a tarja preta, a receita tipo B exige que o profissional prescritor seja previamente cadastrado na autoridade local de vigilância sanitária, incrementando o controle. “A medida foi adotada a partir do aumento de relatos de uso irregular e abusivo relacionados ao uso do Zolpidem. A análise conduzida pela Anvisa demonstrou um crescimento no consumo dessa substância e a constatação do aumento nas ocorrências de eventos adversos relacionados ao seu uso. Foi possível ainda identificar que não há dados científicos que demonstrem que concentrações de até 10 mg do medicamento mereçam um critério regulatório diferenciado”, observa a agência, ao divulgar a aprovação do endurecimento das regras pela Diretoria Colegiada da Agência.
Uma produtora juiz-forana ouvida pela Tribuna, de 43 anos, por exemplo, afirma não ter ultrapassado a dose noturna de 10mg por noite, mas a facilidade em conseguir as receitas de duas vias pode ter feito com que ela continuasse a recorrer à pílula diariamente por três anos, tempo muito superior ao indicado na própria bula do medicamento. Os efeitos, ela admite, já não são mais os mesmos, porque o sono demora mais a chegar. Ainda assim, o “ritual” prevaleceu, por temer a insônia, em meio a episódios de compras on-line acompanhados de amnésia, muito comuns entre os usuários.
“O alerta da tarja preta chegou a tempo”
Presidente da Associação Psiquiátrica de Juiz de Fora, o médico Bruno Cruz sempre recebeu muitos relatos de abuso de Zolpidem, tanto na primeira consulta, quanto na sequência do tratamento. Para ele, a mudança para a receita azul chancelada pela Anvisa por si só não vai reduzir esse uso abusivo do medicamento, mas já é um elemento a mais nesse combate.
O psiquiatra destaca a importância do acompanhamento médico para a dosagem correta e alerta que os profissionais sempre devem ficar atentos com relação ao passado do paciente. “Para quem tem histórico de dependência química, a prescrição tem que ser bem mais vigiada”. De qualquer forma, ele aponta que a receita azul é uma sinalização de “cuidado” importante para médicos e pacientes, sobretudo para os profissionais de outras especialidades menos frequentes no tema.
Bruno afirma que distúrbio do sono é uma questão relatada com frequência nos consultórios. “Mas não chega sozinha. Vem com algum sintoma, dentro de uma síndrome ou um contexto”, destaca. Pessoas depressivas ou ansiosas, por exemplo, costumam sofrer com insônias, segundo ele.
O especialista pondera que, apesar da necessidade de controle, o Zolpidem é uma boa substância e tem suas indicações, não devendo ser crucificado. “Quando bem indicado, é ótimo, só não pode ser utilizado sem critério. O paciente não deve tomar sem solicitação e acompanhamento médico, principalmente aquele com histórico de abuso de substâncias.” Bruno enfatiza que o problema não é o uso crônico, mas o abusivo. “Aquela pessoa que vai no uso crescente, acaba impactando sua vida social, laboral e afetiva. O alerta da tarja preta chegou a tempo.”
Mais de 17 milhões de caixas de Zolpidem vendidos em 2023
Segundo a Anvisa, Zolpidem é um agente hipnótico indicado no tratamento da insônia de curta duração, por dificuldades em adormecer e/ou manter o sono. “Seu uso deve ser o menor possível e, assim como para todos os hipnóticos, não deve ultrapassar quatro semanas. O tratamento além do período máximo não deve ser estendido sem uma reavaliação da condição do paciente, pois o risco de abuso e dependência aumenta com a dose e a duração do tratamento.”
Só no ano passado foram comercializadas no País mais de 17 milhões de caixas de Zolpidem. Em 2020, no auge da pandemia, o número foi ainda maior: 23 milhões. A expectativa, no entanto, é que essas vendas sejam mais controladas a partir do dia 1º de agosto, quando será exigida a receita B (azul) para a prescrição e a dispensação de todos os medicamentos à base de Zolpidem, independente da concentração da substância. “Este prazo foi definido para evitar que os pacientes possam ter alguma descontinuidade no seu tratamento”, pontua a Anvisa.
O tempo entre a aprovação da medida, ocorrida em maio, e a efetivação da mesma também permite que os médicos que ainda não possuam cadastro para a prescrição azul possam se cadastrar junto às autoridades sanitárias locais. As embalagens com tarja vermelha continuarão sendo vendidas nas farmácias até o final do prazo de validade, porém, mediante a apresentação da receita B.
“Até 1º de dezembro de 2024, os fabricantes desses medicamentos poderão fabricá-los com a embalagem com tarja vermelha. Após essa data, todos os medicamentos fabricados à base de Zolpidem já deverão conter a tarja preta em sua embalagem”, estipula a Anvisa.
Distúrbios do sono atingem mais de 70 milhões
Dados da Associação Brasileira do Sono (ABS) revelam que mais de 70 milhões de brasileiros se queixam de conviver com insônia, considerado o distúrbio mais frequente de sono. A privação de horas dormidas pode levar a alterações na saúde física ou mental, e pode estar associada a questões psiquiátricas, como transtornos de humor, de ansiedade ou de personalidade. Números obtidos em estudos da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) são ainda mais alarmantes: 72% dos brasileiros sofrem de doenças relacionadas ao sono, entre elas, a insônia. De acordo com o Ministério da Saúde, a atenção primária (UBSs) é a porta de entrada para a população e desempenha papel fundamental na identificação precoce dos sintomas.