Elas querem ser reconhecidas como serviços de saúde, substituir pronto-socorro e ser o primeiro ponto de contato da população
As farmácias seguem buscando seu espaço como o primeiro ponto de contato de saúde com a população brasileira. Ampliando a gama de serviços oferecidos, como exames e vacinas, o setor depende de novos avanços na regulamentação para ir além – telessaúde está no radar.
Paralelamente, as empresas do setor se movimentam para se tornarem parceiras dos planos de saúde, em substituição ao pronto-socorro tradicional. A ideia é reduzir custos às operadoras e trazer mais comodidade aos pacientes, já que a capilaridade das farmácias no país é considerada um dos principais benefícios para a ampliação dos serviços disponíveis.
Atualmente, a regulação da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) autoriza a realização de exames de triagem e aplicação de vacinas, além de outros serviços farmacêuticos. Apesar do Conselho Federal de Farmácia (CFF) ter regulamentado em 2022 a telefarmácia, incluindo a teleinterconsulta com médicos, ainda há insegurança jurídica sobre o tema por não haver permissão ou proibição expressa na lei.
Mesmo representando menos de 1% no faturamento das farmácias, o setor vê potencial para que esses serviços possam não só contribuir com a saúde da população de forma geral, mas também aliviar os sistemas público e privado, além de fidelizar e atrair clientes para a compra de produtos.
Empresas ouvidas por Futuro da Saúde afirmam que ainda há muito espaço para explorar o papel do farmacêutico junto à população. Por isso, defendem que, mesmo com o avanço de drogarias como hub de saúde, o profissional deve ser o ponto focal dos consumidores e pacientes.
“Se a Anvisa fizer uma análise de impacto regulatório e um benchmarking como exemplos de outros países, vai ver que não faz sentido estabelecer algumas restrições. Existem outras questões para além das questões sanitárias, mas faz todo sentido que tenhamos uma regulamentação que seja mais permissiva e amplie cada vez mais o escopo de atuação das farmácias para transformá-las mesmo em um hub de serviços e produtos para a saúde”, explica Ana Cândida Sammarco, sócia da prática de Life Sciences & Healthcare do Mattos Filho.
Mercado de farmácias e serviços
A pandemia de Covid-19 representou uma virada de chave das farmácias. Isso porque foi durante o período que exames para detectar a presença do vírus foram realizados massivamente pela população. Mesmo já podendo aplicar vacinas desde 2017, foi em 2022 que a Anvisa revisitou as regras e permitiu a realização de exames de triagem em farmácias.
“Sempre escutamos das redes de farmácias que há interesse em aumentar a oferta. Todo trimestre temos atualizações de novidades que estão sendo oferecidas, de teleconsulta até testes de doenças novas, mas ainda tem um desafio regulatório. A farmácia tem um limite sobre o que pode oferecer, até esbarrarem em uma legislação”, aponta Gustavo Senday, analista de varejo da XP.
Ele explica que há intenção de redes de farmácias em atuarem com planos de saúde. É o caso da RD Saúde, das marcas Raia e Drogasil, que negocia com operadoras para que suas unidades substituam o pronto-socorro tradicional em hospitais. Esse serviço poderia ser oferecido por telessaúde.
Gustavo observa que não há perspectiva desses serviços de saúde ultrapassarem 2% do faturamento nos próximos cinco anos. O foco das farmácias seguirá a venda de medicamentos e produtos over the counter, como suplementos alimentares, produtos de higiene e beleza. No entanto, eles são um caminho para a fidelização dos consumidores.
O Brasil tem cerca de 90 mil farmácias espalhadas pelo país. A projeção da Associação Brasileira de Farmácias e Drogarias (Abrafarma) para 2024 era de que somente suas 29 associadas representassem para o setor uma receita de 100 bilhões de reais. Elas representam apenas metade do setor.
“O cliente que vai na loja fazer um serviço geralmente tem um ticket médio maior e uma recorrência mais frequente. É um cliente mais fiel, a cesta dele é, na média, maior do que simplesmente uma farmácia convencional”, afirma o analista da XP, que aponta que o caminho esperado é que haja a expansão do escopo de atuação.
De acordo com Anna Cândida Sammarco, do Mattos Filho, existe uma “zona cinzenta” com relação aos tipos de serviços que podem ser realizados, que não estão absolutamente expressos na regulamentação ou proibidos. É o caso da telessaúde, por exemplo, que algumas empresas oferecem e outras não, por falta de segurança jurídica.
“Entendo um pouco o racional de protecionismo em relação ao consumidor, para evitar que seja lesado, mas isso talvez o esteja prejudicando de alguma forma, porque está impedindo que tenha acesso a serviços de saúde que poderia ter”, afirma Sammarco, que defende que a telessaúde possa ser realizada nas farmácias.
Atualizações recentes do CFF, regulamentações e legislações permitiram aos farmacêuticos a prescrição de anticoncepcionais, medicamentos isentos de prescrição e vacinas. Mas, segundo especialistas, é possível avançar ainda mais no papel dos profissionais, assim como nas permissões para as farmácias.
Foco no paciente do SUS
Proprietário das marcas Drogaria São Paulo e Drogarias Pacheco, o Grupo DPSP não só vê potencial nos serviços de saúde dentro de suas unidades, como prepara o lançamento de duas lojas exclusivas para serviços farmacêuticos, uma em São Paulo e outra no Rio de Janeiro.
Kefren Capuano, executivo de Novos Negócios da empresa, explica que ela atua até onde possuem segurança jurídica, o que não inclui, no momento, a telessaúde. No entanto, caso tenham alguma atualização regulatória, vê como possibilidade a exploração de novos serviços dessa linha.
“O volume de farmácia é muito maior do que os estabelecimentos públicos de saúde. Então, quando o paciente consegue enxergar que a farmácia pode ser aquele primeiro ponto de contato, damos um passo em toda a saúde pública do Brasil. E com a resolução que ampliou os testes dentro da farmácia, permite que não só a DPSP, mas que todos os varejistas farmacêuticos deem esse passo”, afirma Kefren.
O executivo aponta que cerca de 350 lojas do grupo contam com serviços de vacina, distribuídas em 10 estados. Exames de triagem estão presentes em mais de 600 lojas, que podem oferecer até 35 testes disponíveis.
Diferente da RD, a DPSP mira uma atuação fora dos planos de saúde. “Temos cerca de 75% da população brasileira sem nenhum plano de saúde, enquanto apenas 25% está coberta pelas operadoras. Então, miramos o outro lado. Os 75% estão no SUS, que já está sobrecarregado e com diversos pontos de preocupação. Esse é o público que enxergamos que precisamos apoiar”, aponta o executivo.
O grupo também defende que o farmacêutico é o protagonista das farmácias, e que cada profissional da saúde tem seu espaço no cuidado com o paciente. No entanto, observa que é preciso avançar no aspecto cultural para que o farmacêutico seja reconhecido pela população como esse agente transformador.
“É difícil pensar como seria ter outros profissionais na farmácia, porque a jornada entre médico, paciente e farmácia já está muito bem descrita. A regulamentação não permite ter um médico, mesmo que seja por telemedicina, dentro de uma drogaria. As estratégias que traçamos são sempre para cumprir a lei vigente. Uma vez que essa determinação mude, começamos a pensar em outras estratégias”, explica Capuano.
Parceria com plano de saúde
A Pague Menos já conta com uma parceria para oferecer teleconsulta através de suas unidades a beneficiários da Liv Saúde, operadora com 61 mil beneficiários, através de sistema do próprio plano de saúde. Atualmente, a parceria foca apenas em Fortaleza, uma das principais praças da operadora.
Socorro Simões, diretora de Hub de Saúde da Pague Menos, explica que a resolutividade nesses atendimentos é de 98%. Caso o médico solicite algum exame de triagem disponível na unidade, o usuário tem a possibilidade de fazer no próprio local e já passar em consulta.
“Queremos desafogar a alta demanda que tem no pronto-socorro. Podemos ser o ponto de triagem. Antes dos beneficiários irem ao pronto-socorro, faz a triagem na farmácia, com a telemedicina do plano de saúde e pode receber a receita no celular”, explica ela.
No entanto, a executiva aponta que o maior público que utiliza os serviços é o consumidor convencional. “Em 2024, 10% dos clientes que entraram na Pague Menos foram para o consultório farmacêutico. Os clientes que vão para o consultório entraram na farmácia para comprar uma medicação e oferecemos o serviço”, observa ela.
No período, foram realizados mais de 3 milhões de atendimentos farmacêuticos e 7 milhões de serviços, sendo que 5 milhões eram gratuitos, como aferição de pressão e oximetria. Simões também explica que parcerias com a indústria farmacêutica são essenciais nesse sentido, já que há alguns exames oferecidos gratuitamente à população, como hemoglobina glicada, a quem adquire medicamentos para diabetes.
“Quando olhamos para serviços de saúde na farmácia, olhamos muito para a fidelização. Não é sobre o quanto o faturamento desse serviço vai representar, mas o quanto o cliente fica engajado e recorrente. Nosso objetivo é colaborar com a jornada de cuidado. Hoje, a farmácia tem uma jornada transacional, mas precisa ser relacional. Precisamos que esse cliente olhe para a farmácia e veja um ambiente de cuidado”, afirma a diretora de Hub de Saúde.
O grupo conta com 1649 lojas espalhadas pelo país e vê que essa capilaridade pode ser importante ponto de acesso da população. A executiva observa que a descentralização dos hospitais é uma necessidade importante do Brasil. O farmacêutico deve seguir sendo o protagonista, principalmente com o avanço das regulações.
“O negócio da farmácia é vender remédio e vamos continuar fazendo isso com muita clareza, mas também é cuidado. Vamos cuidar daquele cliente e esse vai ser o meu diferencial competitivo nesse mercado que cada vez mais cresce e que é muito disruptivo. Temos isso na nossa veia”, defende Simões.
Rafael Machado
Jornalista com foco em saúde. Formado pela FIAMFAAM, tem certificação em Storyteling e Práticas em Mídias Sociais. Antes do Futuro da Saúde, trabalhou no Portal Drauzio Varella. Email: rafael@futurodasaude.com.br
Fonte: https://futurodasaude.com.br/farmacias-como-hubs-de-saude/