Existem alguns desafios do segmento para se tornar 4.0
Muito mais que simples pontos de venda de medicamentos e produtos relativos à saúde, as farmácias e drogarias brasileiras têm se tornado pontos de atenção primária à saúde. A atualização da Resolução 302 da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), que entra em vigor em 1º de agosto, permite que realizem uma série de mais de 40 exames que antes eram restritos às clínicas e laboratórios.
A expectativa é de que a nova regra, aumentando a concorrência, democratize o acesso da população mais pobre aos exames e, consequentemente, aos tratamentos.
Visitando Belo Horizonte para participar o Road Show Abrafarma – evento de qualificação profissional promovido pela Associação das Redes de Farmácias e Drogarias –, o presidente da Associação Brasileira das Redes de Farmácias e Drogarias (Abrafarma), Sérgio Mena Barreto, falou com exclusividade ao Diário do Comérico, sobre a novidade, os desafios do segmento e para se tornar 4.0, a preparação dos farmacêuticos do futuro, as lições tiradas do período da pandemia, as oportunidades de negócios, entre outros assuntos.
Recentemente as drogarias foram autorizadas a realizar mais de 40 diferentes tipos de teste que antes eram restritos a laboratório e clínicas. Então, podemos dizer que o segmento está aumentando a sua importância dentro do sistema de saúde, certo? Qual o impacto disso para a população? A maior concorrência vai fazer os preços caírem?
Essa nova medida da Anvisa muda tudo. Imagine que 70% da população não faz check-up. Isso tem o poder de transformar a vida das pessoas, porque vai identificar mais cedo vários problemas. O homem, por exemplo, pode fazer um PSA, que é um exame com uma gota de sangue, na farmácia, 15 anos antes dos primeiros sinais da doença na próstata aparecerem.
Aquela menina que começa a vida sexual aos 17, 18 anos, mas que só começa a fazer prevenção do câncer aos 30, pode viver durante 15 anos com HPV, por exemplo. Agora ela pode testar na farmácia. Isso é tão poderoso, que pode, realmente, aumentar a longevidade e a qualidade de vida das pessoas. Essa é, talvez, uma das notícias mais importantes dos últimos anos.
Agora olhando da porta pra dentro: sob o ponto de vista dos negócios, as farmácias e drogarias estão preparadas? Isso vai alavancar negócios?
Temos muitos tipos de farmácia no Brasil. Existem as pequenas, individuais. Há, ainda, as redes que a Abrafarma representa. São 90 mil farmácias no Brasil, desse total, 10% são filiadas à Associação. Apesar de toda farmácia poder fazer os testes, elas precisam se preparar, ter um profissional qualificado. Com a nova regra, esperamos que isso esteja em todos os lugares, mas sem prescindir da qualidade. A qualidade do exame é garantida porque é o mesmo teste rápido feito no hospital ou no posto de saúde, mas o profissional tem que estar qualificado, tem que ter uma técnica para fazer isso.
Existe mão de obra qualificada para dar suporte a esse processo?
Esse evento em Belo Horizonte é um road show que percorre o Brasil. É um esforço de trazer qualificação ao vivo para os farmacêuticos, mas também temos programas on-line de qualificação com mais de 20 mil certificados emitidos. O profissional precisa, obviamente, estar antenado com as novidades. Vamos investir muito em qualificação este ano. A resolução da Anvisa é muito clara sobre quem é o profissional responsável pelos testes dentro das farmácias: o farmacêutico.
O Brasil, de forma geral, e Minas Gerais têm uma grande tradição na formação em Farmácia. Como o senhor avalia a atual formação desses profissionais?
O Brasil tem grandes escolas e profissionais respeitados internacionalmente, mas o nosso modelo educacional ainda utiliza um formato ancorado no passado. Não temos que abandonar o passado, mas o mundo passa por uma transformação tecnológica que precisa ser inserida nos currículos.
Do outro lado, cabe ao profissional querer se atualizar e a empresa oferecer condições para essa qualificação. É isso que Abrafarma faz ao promover palestras e eventos. Então, é uma responsabilidade compartilhada entre academia, profissional e empresário.
O que é a Farmácia 4.0?
A farmácia 4.0 usa a tecnologia sem perder o lado humano. Sem perder o lado do acolhimento, que eu chamo de high touch, ela também é uma farmácia high tech. A farmácia 4.0 é a porta de entrada do sistema de saúde.
E agora, qual o papel do farmacêutico nela?
Esse farmacêutico não é mais só um entregador de caixinha. Ele é um profissional qualificado, que pensa em farmácia clínica, que estuda e é capaz de perceber através de uma conversa com o paciente quando ele precisa procurar o médico. Então, essa nova farmácia é mais completa, ela mudou o modelo de negócio do transacional pelo relacional.
Durante a pandemia as drogarias ganharam uma nova dimensão, inclusive no que diz respeito à saúde mental, já que era um dos poucos lugares que permaneceram abertos. Quais lições e quais as mudanças mais importantes vindas desse período?
Aquele foi um período muito duro. Batalhamos muito para atender a população da melhor maneira possível. Eu participei ativamente na concepção da lei que permitiu que as farmácias realizassem testes rápidos para o diagnóstico do Covid-19. Imagina o que seria se não tivéssemos as salas de serviços com profissionais habilitados. Talvez o desastre fosse ainda maior e não tivéssemos falando aqui de 700 mil mortes, mas sim, de dois milhões de pessoas mortas.
Dos 20 milhões de testes que a gente fez na Abrafarma, pegamos uma amostra de três milhões e fizemos um corte. Percebemos que 10% das pessoas estavam graves o suficiente para terem sido encaminhados ao hospital. Se fizemos 20 milhões de testes, podemos ter salvado dois milhões de vidas. Esse estudo vai sair, brevemente, em uma revista médica internacional.
Um dia, recebi uma ligação da presidente da Associação dos Magistrados do Brasil. Ela me disse: “Sérgio, aumentou muito a violência doméstica, as mulheres estão em casa, presas com seus algozes. Queremos criar uma campanha: se a mulher chegar à farmácia com um X vermelho de batom na mão, o atendente pode chamar a polícia”.
Eu perguntei por que escolheram as farmácias e não outros estabelecimentos. A resposta foi “porque a farmácia é um dos estabelecimentos mais acolhedores que existem”. Então, isso é um símbolo gigante de como a farmácia se transformou nos últimos anos no Brasil.
Também durante a pandemia houve a quebra das cadeias de suprimentos e passamos por falta de medicamentos e outros insumos e uma inflação descontrolada no setor. Isso já foi resolvido? E o que a Abrafarma está fazendo para que isso não se repita em proporções tão catastróficas, visto que teremos outras pandemias no futuro?
Nos anos de 1970 a indústria química no Brasil foi desmantelada e a gente depende em 95% de insumos de fora. Nós temos uma logística ineficiente e já era assim antes da pandemia. Tanto que as redes da Abrafarma tem centros de distribuição (CDs) espalhados pelo Brasil. Um aprendizado é que, realmente, temos que melhorar o nível da logística brasileira. A cadeia produtiva tem que trabalhar junto com a sociedade para isso.
A cadeia de suprimentos ainda não voltou ao normal, ainda temos falta de produtos. Não voltamos ao nível pré-pandemia que já não era um nível adequado.
Outro ponto que não pode sair da pauta de nenhum setor é o ESG, mas o varejo tem dificuldades específicas nesse tema por conta da grande pulverização. Como o setor e a Abrafarma têm encarado esse desafio?
Na Abrafarma temos grupos para discutir os temas importantes como diversidade e sustentabilidade. E, na verdade, o ESG não é uma coisa nova. Ele sempre esteve no DNA de companhias que realmente têm essa preocupação com a comunidade no seu retorno. Eu diria que o foco agora é desenvolver equipes e marcadores que as empresas possam publicar.
Um grave problema de saúde pública no Brasil é a automedicação. O que a Abrafarma tem feito nesse sentido, principalmente no interior e periferias das grandes cidades, onde o acesso à saúde é mais difícil?
A automedicação é uma doença global reconhecida pela Organização Mundial da Saúde. A OMS diz que os países podem melhorar a saúde se cuidarem da adesão – que é o fato de as pessoas não abandonarem o tratamento – e no Brasil essa taxa passa de 50%. E, do outro lado, resolver a questão do acesso, coisa que nós não resolvemos ainda.
Infelizmente, não temos políticas públicas nessa área. Digamos que a farmácia popular atinja 1% do total de medicamentos prescritos. Então, as pessoas têm que comprar os outros 99%. Nos países europeus, por exemplo, em 70% dos casos, quem paga pelo medicamento é o governo. Na Argentina é a mesma coisa. O Brasil tem que atacar seriamente esse problema e permitir que haja mais acesso.
Isso não quer dizer liberar, como alguns têm sugerido, a venda de medicamentos isentos de prescrição (MPIs) em todo lugar. Eles aliviam sintomas mas não tratam as doenças. Países como a França, onde os MIPs são liberados, já resolveram o problema do acesso.
Mais de 700 mil pessoas morrem por ano no Brasil de doenças evitáveis, como diabetes e hipertensão, não tratadas. O Brasil vai melhorar muito a saúde, realmente, com essa disseminação dos testes pelas farmácias. A partir de um marcador alterado, o farmacêutico vai indicar que tipo de especialidade o paciente precisa procurar.