Considerando o público em geral, apenas 37% disseram ser contra a liberação
Na consulta pública realizada pela Anvisa sobre os cigarros eletrônicos (também chamados de vapes), a maioria dos profissionais de saúde disse ser contra a sua liberação no Brasil.
A consulta é parte do processo de revisão da norma vigente que, desde 2009, proíbe os dispositivos, apesar de serem bastante comuns no país. Iniciada em dezembro, essa etapa terminou em fevereiro, e os dados foram divulgados na última semana.
A revisão está em andamento desde 2022 e ainda não tem prazo para ser concluída. Embora não fosse obrigatório, a agência resolveu rever os impactos da regra para considerar estudos mais recentes sobre os cigarros eletrônicos.
No total, foram 13,9 mil participações na consulta pública, entre pessoas, empresas e entidades. A participação não impedia mais de uma contribuição pelo mesmo usuário. Os principais destaques foram:
— A discussão acontece em meio à pressão da indústria do tabagismo a favor da liberação. Enquanto a consulta estava aberta, o setor iniciou a campanha, com posts pagos em redes sociais, “Eu quero escolher”, que estimulava a participação na consulta afirmando que o cigarro eletrônico era uma “alternativa potencialmente menos tóxica que o cigarro”.
— O argumento principal dos defensores é que, ao contrário do cigarro comum, que contém tabaco e libera monóxido de carbono (que é cancerígeno), o vape é por vaporização e, por isso, menos prejudicial.
— Só que a realidade é diferente, de acordo com especialistas. O cigarro eletrônico tem mais de duas mil substâncias, várias delas tóxicas e cancerígenas. (Leia mais abaixo o que dizem os dois lados no debate.)
Para a presidente da Sociedade Brasileira de Pneumologia, Margareth Dalcolmo, a expectativa é a de que a norma da Anvisa seja mantida.
Não estamos surpresos com o resultado da consulta pública, mas isso não interfere no debate científico que se tem sobre o tema. Cada vez mais, os estudos mostram que não há benefício na troca do vape pelo cigarro comum e que ele é tão prejudicial à saúde quanto. Nossa expectativa é a de que a regra seja mantida pela Anvisa.
— Margareth Dalcolmo, presidente da Sociedade Brasileira de Pneumologia
O g1 procurou a Associação Brasileira da Indústria do Fumo (Abifumo), mas não recebeu retorno até a publicação.
O que está em jogo com a consulta pública?
A consulta pública é só uma parte do processo de revisão, e o resultado não precisa ser seguido pela agência.
Outro ponto é que, ao longo da revisão da regulamentação, a Anvisa chegou a considerar a permissão, mas, depois da análise de impacto que reviu o que ocorre no país com a restrição e o que vem acontecendo em outros países com a liberação, como Estados Unidos e Reino Unido, a agência decidiu que não consideraria flexibilizar a regra.
Além disso, a Anvisa alega que ainda não existe base científica para dizer que os vapes sejam melhores que cigarros e há o risco de aumentar o tabagismo.
O que acontece agora é que o resultado vai ser analisado pela gerência técnica da Anvisa, que consolida os dados, envia para a Advocacia Geral da União (AGU) e só depois o texto chega ao relator do processo. Depois, ainda será preciso passar pelo crivo da diretoria da agência.
O prazo para isso acontecer não foi divulgado.
Veja o que diz quem é contra e quem é a favor:
CIGARRO ELETRÔNICO X CIGARRO COMUM
O que diz quem é a favor da liberação: A indústria argumenta que os cigarros eletrônicos funcionam como “redução de danos” para quem já fuma cigarro comum. Ou seja, de que são uma forma menos prejudicial de acesso à nicotina para pessoas viciadas. Para isso, usam como base um relatório feito pelo Kings College, do Reino Unido, que diz que vaporizadores são 95% menos prejudiciais que o cigarro comum.
O documento chega a essa conclusão a partir de uma revisão de artigos publicados e de pesquisas feitas anteriormente por outros institutos com pessoas que usaram cigarro eletrônico, mas durante um curto prazo.
O que diz quem é contra a liberação: Os especialistas médicos refutam o argumento porque dizem que a análise não oferece base para concluir o risco 95% menor.
Essa classificação de risco é uma falácia que não tem qualquer evidência científica. Pudemos ver isso com a crise nos Estados Unidos com pessoas morrendo por doenças associadas aos vapes. Precisamos lembrar que é um dado que vem de uma indústria que, quando apresentou o cigarro tradicional, jurou que a nicotina não viciava. Como podemos confiar?
— André Szklo, epidemiologista especialista em controle do tabaco do Instituto Nacional do Câncer
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O médico e coordenador da Comissão de Combate ao Tabagismo da AMB, Ricardo Meireles, explica que não existe redução de danos para o tratamento do tabagismo, que mata cerca de 400 pessoas por dia no Brasil. A única forma, ressalta, é cessar o uso de qualquer fumo.
“Não existe redução de danos no tabagismo. Estamos vivendo agora o que vivemos um século atrás, quando o cigarro começou a circular. No começo, as pessoas não sabiam que o cigarro fazia mal e foram muitas mortes até que soubéssemos a verdade. Hoje, o cigarro eletrônico está no mercado há poucos anos e já tem uma doença para chamar de sua, que é a evali. (Leia mais abaixo.) Não podemos deixar a história se repetir”, explica.
REGULAMENTAÇÃO DOS CIGARROS ELETRÔNICOS
O que diz quem é a favor: A indústria alega que é preciso regulamentar para haver regras sobre o consumo e que as pessoas parem de consumir o produto clandestino.
“Somente a regulamentação poderá estabelecer requisitos sobre quais produtos poderão ser comercializados e prevenir o consumo de jovens que, sob nenhuma hipótese, devem ter acesso a esses produtos”.
O que diz quem é contra: Para Margareth Dalcolmo, presidente da Sociedade Brasileira de Pneumologia e Tisiologia (SBPT) e membro da Academia Nacional de Medicina, existe uma regulamentação do cigarro eletrônico no Brasil, que é proibição. Ela explica que, desde 2009, já existe uma regra da Anvisa proibindo a produção e comercialização dos dispositivos no país
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Segundo Dalcolmo, as entidades médicas têm unido esforços e reunido pneumologistas, cardiologistas, oncologistas e pediatras para endossar o coro contra qualquer mudança na regra.
Desde 2009, temos uma regulamentação feita pela Anvisa que proíbe a comercialização de qualquer produto que tenha tabaco aquecido e é essa regulamentação que nós defendemos. Pensar em mudar isso é um equívoco, uma inversão de valores enorme
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— Segundo Margareth Dalcomo, presidente da SBPT e membro da Academia Nacional de Medicina
CIGARROS ELETRÔNICOS X SAÚDE PÚBLICA
O que diz quem defende: A Abifumo, que representa as empresas que produzem cigarro, explica que o número de usuários dos dispositivos no Brasil quadruplicou nos últimos 4 anos e chegou a 2,2 milhões de usuários. Os números são da pesquisa Ipec divulgada no fim do ano passado. Com o aumento, argumentam que seria necessário liberar o consumo para controlar quem tem acesso aos cigarros eletrônicos.
O que diz quem é contra: Os especialistas dizem que o número cresceu, mas é pequeno se comparado ao volume de fumantes no Brasil, cerca de 25 milhões de pessoas, segundo o IBGE. Com isso, defendem que o melhor cenário é seguir proibido para frear a crescente.
O momento agora é barrar, se tem 2,2 milhões de pessoas usando isso, a gente precisa agir para que elas não migrem para o cigarro convencional e impedir a expansão de novos fumantes. Agir diferente disso, é cometer o mesmo erro do século passado ao liberar o cigarro convencional que leva milhares de pessoas à morte.
— Ricardo Meireles, pneumologista e Coordenador da Comissão de Combate ao Tabagismo da AMB.
VAPE X IDADE DO FUMANTE
O que diz quem defende: A indústria explica que o produto é feito para pessoas adultas como contenção de danos ao cigarro e que optaram por não parar de fumar.
O que diz quem é contra: Os especialistas apontam que os aromas e sabores de frutas são um apelo aos mais jovens e os vapes são moda entre adolescentes. Nos Estados Unidos, que permite a comercialização dos dispositivos, uma das empresas fabricantes teve que pagar uma multa de R$ 2,3 bilhões por fazer propaganda de cigarros com apelo para menores de idade.
No Brasil, segundo a pesquisa da Vigilância de Fatores de Risco e Proteção para Doenças Crônicas por Inquérito Telefônico (Vigitel), feita em 2019, 60% das pessoas entrevistadas, de uma amostragem de mais de 52 mil, disse que usava vape e que nunca tinha fumado antes. Ou seja, não são parte dos usuários de cigarro convencional, mas um novo público dependente de nicotina. Além disso, a maioria tinha até 24 anos.
Eu tenho atendido adolescentes com pulmões que parecem de uma pessoa de 90 anos. Eu cheguei a falar com uma escola particular de elite no Rio de Janeiro depois de atender pacientes que diziam fumavam no banheiro. São adolescentes dependentes químicos sem saber.
— Margareth Dalcolmo, membro da Academia Nacional de Medicina.
O epidemiologista do Inca, André, reforça que o posicionamento de mercado da indústria de cigarro eletrônico é de, segundo ele, criar uma geração de dependentes de nicotina. Isso porque o perfil do usuário é de não fumantes, jovens e com mais escolaridade.
“A lógica principal dos vapes é criar uma geração de dependentes de nicotina. Até por isso o apelo por aromas e sabores. Eles chegam a pessoas que não têm o perfil de um fumante convencional e as tornam viciados. Com isso, um jovem que usa vape tem quatro vezes mais chance de usar o cigarro comum, que também é mais barato”, explica.
CIGARROS ELETRÔNICOS X DEPENDÊNCIA
O que diz quem defende: Os cigarros eletrônicos têm nicotina. A indústria diz que, apesar disso, ela é uma substância inofensiva, já que são o monóxido de carbono, o alcatrão e outros produtos químicos presentes no cigarro convencional que estão relacionados a danos à saúde.
O que diz quem é contra: A nicotina é uma substância altamente viciante e, segundo a Organização Pan-Americana de Saúde, não há quantidade segura para o consumo. Especialistas ressaltam que é por causa da nicotina que as pessoas usam o cigarro. Os vapes têm sal de nicotina, o que faz com que o composto seja entregue em concentrações até 20 vezes maiores no corpo.
“O cigarro eletrônico tem a nicotina em forma de sal, isso entrega mais nicotina e, por isso, tem um potencial muito mais viciante que o cigarro normal. Os relatos são de pessoas que começam com algumas baforadas e perdem o controle sobre o uso. Ou seja, a indústria diz que é mais seguro, mas na verdade está colocando a pessoa em uma armadilha para que ela se torne dependente química”, diz André Szklo, epidemiologista especialista em controle do tabaco do Instituto Nacional do Câncer.
Margareth Dalcolmo diz que a quantidade de nicotina é preocupante também para adolescentes.
Esses dispositivos têm uma concentração de nicotina muito alta. Com sabores e aromas, eles chegam nos adolescentes, que são muito mais impactados por esse alto teor de nicotina. Os vapes têm criado uma legião de viciados muito precoces.
— Margareth Dalcomo, presidente da SBPT e membro da Academia Nacional de Medicina
Evali: a doença causada por vapes
Apesar de ainda não existirem indícios no médio e longo prazo sobre a segurança dos vapes, em menos de duas décadas dos dispositivos no mercado, os cigarros eletrônicos já deram origem a uma doença específica, com estragos devastadores. Uma lesão pulmonar que pode levar à morte em um curto espaço de tempo: a evali.
A doença foi descrita primeiro nos Estados Unidos, depois de um surto de jovens sendo internados com lesões pulmonares em 2019. Só no país, foram cerca de 70 mortes, segundo o CDC (Centers for Disease Control and Prevention), órgão de saúde norte-americano.
O médico pneumatologista Felipe Marques, do hospital Beneficência Portuguesa, em São Paulo, publicou um artigo sobre a doença após atender uma paciente com uma pneumonia que se repetia sem explicação até descobrir que se tratava de um caso de evali.
“O vape tem substâncias tóxicas que agridem nosso pulmão, então ele responde tentando evitar o agressor recrutando células do sistema imunológico que podem ‘machucar’ nosso sistema pulmonar causando lesões”, explica Marques.
No Brasil, nove casos de evali foram registrados de 2019 a 2020, segundo a Anvisa. No entanto, a SBPT alerta que a doença é subnotificada. O motivo é que, no Brasil, a notificação de casos não é compulsória. Essa é uma demanda da classe médica para ter uma real dimensão do problema no país.